quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Dias de pião: uma ópera apoteótica em três atos


Parte I: o emergente suburbano

Vou me mudar. E isso quer dizer: FAVELA NO MORE. Chega de tiroteio. Chega de bala perdida. Chega de toque de recolher. Pelo menos era isso que eu pensava até me lembrar que só mudarei de bairro e não de planeta. Mesmo não representando essa mudança toda que eu esperava até que é um baita dum upgrade. Sairei da bela favela do Jaca$#%% e irei para o Upper East Side de Maria da Graça. Provavelmente, se você não é do Rio isso não significou PORRA nenhuma, mas não se avexe, muita gente que mora por aqui também não deve ter entendido.


Se você é de fora e só conhece o Leblon de Janeiro pelas novelas do Manoel Carlos (o português mais letrado depois de Saramago), Maria da Graça é um bairro nobre da ilustre Zona Norte da cidade. Fica localizada entre o Méier e o protetorado de Cachambi & Del Castilho (a.k.a. o Norte Shopping). Da dobradinha Maria da Graça/Jacarezinho vieram ilustríssimos membros da sociedade brasileira como o jogador Romário e o cantor (?) Latino, além deste que vos fala, que dispensa apresentações (só porque este é o meu blog). 

No entanto, pra variar, nada na minha vida é fácil. Então tem que ter um perrengue envolvido. Para começar comprar a bendita casa já foi um parto, ou melhor dizendo, um enterro. Porque são justamente os enterros que são caracterizados por começarem com a choradeira fruto da pseudo-tristeza e falsidade que essas ocasiões pedem. Porque ninguém gosta do morto e todo mundo queria se livrar dele, mas ninguém pode admitir isso senão pega mal. E essa foi a casa que eu comprei. Pertencente a aristocracia graça-mariense, a casa foi de um antigo barão do café que tendo morrido deixou o imóvel para a mulher. Com a recente morte da velha, a casa passou a seus  filhos e aí que o clã dos Messias entra na jogada. 

Como nenhum deles queria uma casa com mais de 700 anos no coração de Maria da Graça, hoje cercado pelo Jacarezinho, Bandeira 2 e Manguinhos,  a Legião dos Sete Órfãos Raivosos decidiu em uníssono vender a budega da casa para os primeiros trouxas que aparecem. E esses trouxas somos nós, claro. O que eles não contavam é com a astúcia de Mamãe Messias, a maior pechinchadora do Hemisfério Sul. Dizem até que o Largo da Pechincha, em Jacarepaguá (Google Maps, pra quem não é do Rio), foi uma homenagem a minha mãe. Isso porque numa visita a minha tia, que mora por aquelas bandas esquecidas por Deus, ela viu um potinho de marmita pro meu pai que custava R$ 3,36 e ficou pechinchando com a vendedora durante 25 horas ininterruptas até que ela de saco cheio vendeu o potinho por R$ 1,99. E assim, ela acabou  também inventando por acaso a loja de 1,99, uma vez que a estabelecimento ganhou fama e passou a vender tudo por esse preço a partir desse dia.

A Legião dos Sete Recém-órfãos mal sabia o que os tinha atingido. Eles vieram com uma história de 600 mil reais por causa do valor cultural e a história da propriedade – uma vez que os mais famosos traficantes do estado (e do País) nasceram nas redondezas –, mas minha mãe, boba que não é, arrematou a venda por três canivetes suíços, um bilhete único e dois ingressos de Flamengo X Madureira do Campeonato Carioca de 2002.    

Parte II: Dias de Pião

Minha mãe tinha resolvido tudo e estava feliz da vida e tranqüila. Mas como sempre, a pica é do aspira. E o aspira sou eu. Acontece que três canivetes suíços, um bilhete único e dois ingressos de Flamengo X Madureira do Campeonato Carioca de 2002 foi tudo o que meu pai economizou juntando o FGTS, a aposentadoria e as poupanças que seriam pra pagar faculdade para meu irmão e eu (o que a gente não precisou pois estudamos na Uerj....cóf, cóf, cóf). Porque se fazer obra tendo dinheiro é divertido, fazer obra sem dinheiro é como andar na montanha-russa (sem cinto) ou ser figurante de Tropa de Elite, a diversão só acaba quando você desiste e pede pra sair. 

Ai na hora das inevitáveis reformas e da mão-de-obra qualificada para os serviços de pedreiro, ajudante de pedreiro, auxiliar de pedreiro (o que faz uma grande diferença), marceneiro, entre outros, sobrou para quem?! Para o filho mestrando que fica em casa a maior parte do tempo (tenho culpa se a carreira acadêmica consiste basicamente de pura contemplação criativa*). E sobraram pra mim os trabalhos mais degradantes e estapafurdios que um ser humano pode fazer numa obra. Isso porque, segundo meu tio, o mestre de obras, quando no quesito construção eu sou um merda. E é engraçado como a vida pode te surpreender. Justamente quando eu pensava que tinha atingido a maioria e não tivesse mais nada em que eu poderia ser um merda, que eu já não soubesse, surge mais essa. Mais um pra minha lista**.

*Leia a seguir nos futuros textos “Revisitando a Academia: o orientador que balança o diploma” e “Revisitando a Academia: o fantasma da graduação passada”.  

** Não perca o próximo post “Coisas em que sou um merda”, uma lista maior do que o número de gols perdidos pelo Val Baiano.

Para começar, me colocaram para carregar entulho, uma vez que “isso eu não poderia fazer errado”, o que me foi dito pelo menos três vezes por dia pelo Meu Tio Mestre de Obras e meu pai, que não se chama Messias. E pensar que desperdicei meu tempo nas aulas de Teoria do Jornalismo, Assessoria de Imprensa e Redação para Jornalismo Impresso Cotidiano quando eu poderia ter feito Carregamento de Entulho 1, 2 e 3. E outra, porque toda obra tem tanto entulho?! Era mais fácil ter comprado só o terreno porque de entulho deve ter ido metade da casa. E no lombo de quem foi...

E o mais divertido ainda está por vir, porque também é preciso retirar esse entulho. Meu trabalho foi ensacá-lo e colocá-lo na rua, mas a partir daí como proceder? Os garis não levam e você pode ser multado por deixar esse tipo de coisa na calçada (a vida no asfalto é dura! Favela, I miss you already). Novamente minha função, como sou o jornalista da família e teoricamente sou articulado (socialmente e não baitolamente), eu deveria ter a manha de descobrir essas coisas. E eu descobri. Existe uma coisa chamada Disk entulho, que é um serviço da Comlurb em tese de grátis que retira o lixo pesado se você não for uma empresa. O problema é que existe tanta burocracia e tantas regras que é impossível você conseguir que seu entulho seja levado. Esse foi meu primeiro contanto com a vida de emergente da classe média. Confesso que fiquei com saudade da época em que era um jovem miserável, abaixo da linha da pobreza, sendo feliz na favela em que nasci e jogando lixo nos córregos e nas valas que é o lugar deles.

 Obviamente, não consegui que meu entulho fosse recolhido, isso após inúmeras tentativas, numa das quais o lixo do vizinho foi levado, mas NÃO O MEU (pensei logo, será que eu dei alguma mole e eles perceberam que somos negros?!). Acontece que uma das tais regras é que o entulho precisa estar em sacos de 20 kg, para que o gari dos entulhos – uma espécie de agente especial dentre os garis – possa carregá-lo com a mão sem fuder as costas e processar a Comlurb. Obviamente a gente ignorou isso, já que nos sacos de 20kg só cabe um pedregulhinho e olhe lá. Então a gente colocou tudo em sacos de 50 kg, alguns cheios com 60 kg de pedregulhos (que eu carreguei). E por isso ninguém nunca levava o nosso saco.

Porém, todo e qualquer gari sabe dessa regra e vendo o amontoado de entulho na nossa porta que crescia cada dia mais  (tinha mais da casa nos sacos do que no terreno), eles não perderam tempo e vieram como abutres na carniça oferecer seus serviços em troca de um “pequeno café”. Acontece que o peso que os garis não estão dispostos a carregar por seus salários normais, eles carregam sem problemas se tiver um pequeno suborno envolvido. E a gente que  tava no erro e não iria desfazer tudo para colocar nos malditos saquinhos de 20 kg, que com certeza deve ser algum esquema da Comlurb com a fabricante, pagou não um, mas vários cafezinhos para um batalhão de garis diferentes. Isso porque embora não aparecesse nenhum para pegar o lixo antes, depois que a gente pagou ao primeiro a apareceram dúzias, centenas, milhares, enfim, um enxame de garis pedindo pra levar o entulho. Tenho que confessar que a gente ficou tão sem jeito quando o entulho acabou e tinha vindo gente de Vigário Geral e Itabuã da Serra que a gente deu uns trocados para eles também.

Parte III: No fundo da vala

E não é só isso. Depois do trabalho estrutural, no qual a gente praticamente quebrou a casa toda só pra ter o prazer de reconstruir tudo de novo, alguém, no caso o estúpido que vos fala, disse que seria legal trocar os vasos sanitários de lugar. Mostrando de uma vez por todas que eu definitivamente sou um merda no quesito obras. O problema é que uma coisa que eu aprendi bem nesses quatro anos de faculdade (e meio ano de Mestrado) foi a arte da retórica e argumentação e por ter a titulação mais alta lá em casa alguém me ouviu. Não para minha surpresa, já que eu tive a idéia, coube a mim a ajudar Meu Tio Mestre de Obras a mudar os vasos. E lá fui eu, com meu diploma de Jornalismo debaixo do braço, mexer no esgoto da casa. 





Para quem não sabe as funções de um bombeiro hidráulico no quesito encanamento são quatro: quebrar tudo o que tiver pela frente, arrancar os canos, colocar os novos canos, fechar tudo da maneira que puder com os materiais que ele encontrar pela frente. Nesse contexto, minha função foi a seguinte: limpar o buraco, a famosa vala, retirando entulhos, detritos, lama (MUITA LAMA) e eventuais excrementos que aparecem pelo caminho. O que em minha vã inocência eu, Meu Tio Mestre de Obras e ninguém sabia era que a casa tinha sido construída em cima da porra de um lençol freático. E isso é pior do que se ela fosse construída em cima de um cemitério indígena. Isso porque onde você fura, bate ou quebra sai água e toda terra, TODA TERRA, vira lama. E lá estava eu, jornalista laureado, mestrando e projeto de professor universitário botando a mão na lama massa  para limpar a vala.

Minha única sorte foi a gente ter achado a caixa de passagem antes de levar a vala até a rua. Para quem não sabe, caixa de passagem é o local onde todo o encanamento da casa se encontra e também foi a coisinha abençoada de Deus que impediu que a gente quebrasse 20m² de concreto para chegar até a central de esgoto na rua para trocar os canos. 

Além de ser xingado de todas as formas possíveis e imagináveis por Meu Tio Mestre de Obras, devido a minha inaptidão para o serviço, o lado bom da coisa foi que além de aprender tudo sobre obras, construções, marcenaria entre outras coisas, também pude ouvir as histórias desse meu tio. Sabe aquele porteiro, pedreiro, encanador etc. que come todas as babás, empregadas e até ocasionalmente a mulher do patrão  nos filmes brasileiros (geralmente interpretados pelo Ailton Graça), esse é meu tio. Esse é um traço marcante da família do meu pai, que não se chama Messias. Eu diria até que é algo genético, pois assim como todo traço genético pula uma geração, eu obviamente fiquei sem.



PS: Este post é uma homenagem ao aniversário do Meu Amigo Conde Drácula, que faz aniversário hoje. Sendo um leitor assíduo do blog, ele se sentiu abandonado quando ficou sem nada para ler na época em que ficou desempregado e queria gastar seu tempo de ócio de criativo lendo essa porcaria que chamo de blog mas não podia porque eu não estava atualizando. Agora voltei...se o mestrado permitir.

Aliás, estou no processo de conseguir os direitos de filmagem e editoração de sua história que é muito interessante e renderia um ótimo post para cá.